O Labirinto do Fauno




Labirinto do Fauno (Pan's Labyrith, 2007) não é um filme, é um achado. Não é história, é filosofia. Não é filosofia quadrada, é filosofia com asas. Tudo se passa por meio de duas histórias cruzadas e entrecruzadas: uma, a dos momentos finais da guerra civil espanhola, e a outra, a dos sonhos ainda infantis de uma pré-adolescente.

A narrativa é simples. O ano é o de 1944. Ofélia ( Ivana Baquero) chega a uma vila rural da Espanha, um lugar comandado pelo Capitão Vidal ( Sergi López), o homem que desposará sua mãe viúva, e de quem ele espera ansiosamente um filho. Vidal é o fascista por excelência, completamente frio e devotado à causa do General Franco. Ofélia é a menina envolvida em livros e contos de fadas, e que apesar de se aproximar da adolescência, ainda não perdeu a capacidade imaginativa extraordinária, que a faz praticamente confundir o real com o fantástico.

No decorrer da história, Ofélia encontra o Fauno e seu labirinto, e este lhe diz que ela é uma princesa, e que deverá passar por três provas para assumir sua condição de princesa e seu reino. As provas, típicas das lendas e contos mágicos, implicam em encontrar uma chave após outra e, enfim, trazer a chave final para o fauno, que iria abrir o local mágico, no qual Ofélia assumiria seu reino. Enquanto isso, há também outra pessoa envolta com tarefa que implica em conduzir uma chave para o lugar certo. Trata-se de Mercedes (Maribel Verdú). Ela é a governanta da casa do Capitão Vidal, e está empenhada em levar a chave do depósito de comida e remédios do Capitão para as forças de seu irmão, guerrilheiro anti-fascista que se esconde na floresta próxima. O Capitão Vidal mostra então que só uma força como a dele, que aglutina todo o mal e a bestialidade que pode existir na Terra, tem o poder de atravessar do mundo real para o mundo das fadas, destruindo ambos e, é claro, a si mesmo.

A arte filosófica do filme está não só no engenho da narrativa de um filme bem feito, que prende a atenção do começo ao fim, mas, sim, de ser capaz de fazer o desenho do mal como ele é. O mal é personificado naquilo que todos que viveram o século XX souberam reconhecer: o fascismo. O fascismo é o mal que todos do século XX saberiam apontar como o mal. Mercedes tem o mal em seu encalço. Ofélia, nas tarefas que tentar cumprir para ser princesa, enfrenta seres que são as versões metafóricas e alegóricas do fascismo e, em certo sentido, do próprio Vidal.

Heidegger nos ensina a ver a técnica, a ciência como manipulação das coisas e, nisso, um sintoma da modernidade e da perda da autonomia, que está ligada à demanda por contemplação necessária ao pensamento. Os filósofos da Escola de Frankfurt, principalmente Adorno, aproveitaram essa lição de Heidegger para condenar todo o desenvolvimento da manipulação. Encontraram no fascismo a manipulação máxima. Um dos principais monstros que Ofélia enfrenta, não à toa, só enxerga com as mãos, ou, melhor dizendo, seus olhos estão nas palmas de suas mãos. São olhos postiços, que ele coloca nas palmas das mãos quando alguma criança não se contém e pega algum fruta de sua mesa farta. Uma vez colocado os olhos nas mãos, ele pode então perseguir Ofélia que, como todas as crianças que vieram até ali, não resistiram. Esse também é o drama de Mercedes, pois ela enfrenta os que enxergam com as mãos, os fascistas, no campo da satisfação de desejos: ter a chave do depósito de Vidal é ter acesso a remédios e comida, mais do que a armas. Ela, como Ofélia, não resiste à tentação de fazer mais do que pode, e vai até o esconderijo dos guerrilheiros para entregar esses gêneros. Ambas arriscam tudo em suas tarefas, enfrentando o mal.

A filosofia ali está na medida em que enquanto Ofélia resiste ao Iluminismo, que irá tirá-la do mundo da fantasia e trazê-la para o mundo real, o mundo de Mercedes e do Capital Vidal, este, por sua vez, no mundo real, também trava sua luta titânica contra o mesmo Iluminismo. Essa luta fica estampada quando seu médico, que também era colaborador dos guerrilheiros, o afronta corajosamente, dizendo para não era como ele, que obedecia sem raciocinar a mandos externos. Isso custou a vida do médico. Ele morreu por pronunciar palavras iluministas. Ofélia, diferentemente, morreu por não ter ouvido palavras iluministas. Presa aos sonhos, ela foge para o labirinto do fauno e imagina que pode salvar a si mesma e seu irmãozinho das garras de Vidal. Não pode. Vidal a mata bem no centro do labirinto.

1944 é o ano em que o Iluminismo e as forças das trevas colocam vidas em jogo na Espanha, ali em um mundinho que reproduz a mesma luta mundial, pois ainda falta um ano para acabar a II Guerra Mundial. O mundo irá escapar do fascismo dentro de um ano, enquanto que a Espanha terá mergulhado nele por várias décadas, a partir dali. Ofélia escapou de viver nessa Espanha, ela morre sem ter alcançado qualquer vislumbre da pré-adolescência real. Talvez ela tenha sido, de fato, a única sobrevivente da Espanha, aquela que viveu sob Franco dali para a frente, até à morte (agonizante) de Franco, três décadas depois.

Paulo Ghiraldelli Jr.
O Filósofo da Cidade de São Paulo
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